O avanço tecnológico e a digitalização da vida cotidiana trouxeram à tona um dos maiores desafios contemporâneos ao direito sucessório: a herança digital. Documentos, fotografias, obras artísticas, criptomoedas, contas em redes sociais e interações em aplicativos de mensagens e os mais diversos tipos de bens digitais passaram a compor o patrimônio das pessoas, exigindo respostas jurídicas adequadas e embasadas.

Surgem, então, duas questões centrais: o que acontece com esses ativos digitais quando o titular falece? Como definir os limites de acesso dos herdeiros diante do direito constitucional à privacidade?

Nesse sentido, a transmissão dos bens digitais assume contornos de naturezas jurídicas distintas: de um lado, a sucessão dos bens digitais com conteúdo patrimonial; de outro, aqueles com conteúdo pessoal, privado e afetivo, ou seja, os arquivos digitais e as redes sociais.

No Brasil, ainda não existe legislação específica sobre o tema, embora tramitem no Congresso os projetos de lei 2.664/21 e 4/25. Diante desse vácuo normativo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou, neste mês de setembro, o Recurso Especial 2.124.424 e estabeleceu diretrizes inéditas sobre bens digitais.

O caso concreto


A controvérsia analisada pelo STJ teve origem no trágico acidente aéreo ocorrido em 2016, que vitimou o empresário Roger Agnelli, ex-presidente da Vale, sua esposa, seus filhos e outros familiares próximos. Com a comoriência – isto é, morte simultânea de diversos membros da mesma família –, abriu-se a sucessão e surgiu a necessidade de identificar e preservar bens que pudessem integrar o patrimônio.

Uma das inventariantes requereu em juízo a autorização judicial para acessar computadores e iPads pertencentes à filha falecida, buscando localizar arquivos que poderiam ter valor patrimonial (como documentos de relevância econômica) ou afetivo (registros pessoais, fotografias ou até mesmo vídeos).

O pedido, entretanto, enfrentou resistência. Após ofício enviado à Apple, a empresa informou que não teriam meios para entrar nos dispositivos, o que levou a questão à apreciação do Judiciário. O caso chegou ao STJ no âmbito de recurso especial, suscitando um debate inédito no Brasil sobre a transmissibilidade de bens digitais e o acesso a conteúdo privado do falecido.

O voto da relatora


A ministra Nancy Andrighi, relatora do processo, reconheceu a novidade do tema e a ausência de regulamentação específica sobre a herança digital no ordenamento jurídico brasileiro. Considerando que a falecida não havia deixado senhas para acessar os aparelhos, a ministra destacou que a única forma de acesso legítimo seria por meio de autorização judicial.

Para enfrentar o problema, propôs, após muitos estudos, a criação de um incidente processual específico voltado à identificação e classificação dos bens digitais.

Nesse contexto, sugeriu a nomeação de um inventariante digital – profissional capacitado, com dever de sigilo, responsável por acessar os dispositivos eletrônicos, elaborar relatório detalhado e, em seguida, submeter ao juiz a listagem dos bens encontrados.

Caberia exclusivamente ao magistrado, em decisão fundamentada, determinar quais bens seriam transmissíveis e quais deveriam permanecer resguardados devido à intimidade do falecido ou de terceiros. Nota-se claramente a preocupação da ministra em respeitar a proteção constitucional à privacidade e intimidade do falecido e daqueles com quem ele se relacionava nas redes sociais.

Segundo a relatora:

  • Bens patrimoniais (como direitos autorais, obras literárias, ativos digitais e criptomoedas) devem ser transmitidos aos herdeiros.
  • Bens existenciais (mensagens privadas, registros íntimos e conteúdo de caráter estritamente pessoal) não podem integrar a sucessão, por envolverem direitos da personalidade.

A ministra advertiu que a abertura irrestrita de dispositivos eletrônicos poderia violar a intimidade do falecido e até configurar crime, ao expor dados sensíveis e informações pessoais. Como exemplo, mencionou a hipótese de revelação de relacionamentos afetivos ou segredos pessoais desconhecidos pela família.

Além disso, ponderou que o inventariante digital poderia, em casos específicos, administrar temporariamente determinados bens digitais até a conclusão do inventário, assegurando sua preservação.

A ministra Nancy Andrighi votou pelo parcial provimento do recurso, determinando o retorno dos autos ao juízo de 1º grau para processamento do incidente exposto, sob controle jurisdicional.

Voto divergente


O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva apresentou voto divergente, defendendo a transmissão integral dos bens digitais, com base no princípio da sucessão universal previsto no artigo 1.784 do Código Civil. Para ele, não há justificativa para distinguir bens analógicos de bens digitais, já que ambos integram o acervo hereditário do falecido.

Para reforçar sua posição, o ministro recorreu a diversos exemplos internacionais:

  • Alemanha – o caso “menina de Berlim” (2018): a corte alemã reconheceu aos pais o direito de acessar a conta de Facebook da filha falecida. Considerou-se que o contrato de uso da plataforma digital se transmite por sucessão universal, de forma análoga ao que ocorre com cartas pessoais ou diários mantidos em vida. A decisão afastou o argumento de sigilo das comunicações, entendendo que os herdeiros não são terceiros estranhos, mas sucessores legítimos.
  • Espanha, França e Itália: legislações permitem aos herdeiros o acesso direto aos dados digitais do falecido, salvo manifestação expressa em sentido contrário. Na Espanha, por exemplo, a Lei Orgânica de Proteção de Dados garante aos familiares e herdeiros o direito de suceder contas de e-mail, redes sociais e serviços digitais. Na França, a Lei 1.321/16 assegura ao usuário o direito de definir em vida a destinação de seus dados digitais, e, na ausência de disposição, confere aos herdeiros a prerrogativa de acesso e gestão. Na Itália, o Decreto Legislativo 101/18 também atribui aos familiares o direito de proteger os dados pós-morte.
  • China: desde 2021 vigora uma lei que inclui os ativos digitais (como contas, moedas virtuais e itens em plataformas) na herança, com plena transmissibilidade.
  • Estados Unidos: diversos estados, como Califórnia, Indiana, Oklahoma, Oregon, Nebraska, Massachusetts e Nova York, editaram normas que permitem aos herdeiros acessar contas de e-mail e redes sociais do falecido, chegando até a reconhecer a possibilidade de manutenção de perfis digitais por sucessores, como no caso de Delaware.

Esses exemplos, segundo o ministro, revelam uma tendência global favorável à transmissibilidade da herança digital, sem distinguir entre bens patrimoniais e existenciais, pois ambos podem coexistir em um mesmo acervo.

Para o ministro Villas Bôas Cueva, impor a obrigatoriedade de incidente processual em todos os inventários poderia gerar entraves práticos e excessiva judicialização, retardando ainda mais a conclusão dos processos sucessórios.

Ele também questionou a legitimidade de atribuir a um terceiro o acesso inicial aos bens, já que, pela lógica da sucessão, os herdeiros seriam os mais legítimos para realizar essa triagem. Assim, a distinção entre bens patrimoniais e existenciais, embora juridicamente relevante, poderia ser difícil de realizar na prática.

O ministro destacou que preocupações sobre o sigilo das comunicações do falecido já encontram solução, considerando o segredo de justiça, o abuso de direito e a responsabilidade civil. Não haveria, portanto, necessidade de criar uma figura nova para esse fim.

Com base nesses argumentos, o ministro Villas Bôas Cueva votou pelo provimento do recurso especial, para que o juízo do inventário expedisse novo ofício à Apple, promovendo os atos necessários à identificação e ao acesso dos bens digitais, sem necessidade de instaurar incidente processual obrigatório.

Segundo ele, o princípio da sucessão universal deveria prevalecer, garantindo aos herdeiros acesso imediato ao conteúdo digital, exceto se o falecido tivesse limitado expressamente esse direito em vida.

A formação da maioria


Os ministros Humberto Martins, Moura Ribeiro e Daniela Teixeira acompanharam a relatora Nancy Andrighi, formando a corrente majoritária. Assim, a Terceira Turma do STJ reconheceu a possibilidade de acesso dos herdeiros aos bens digitais, desde que por meio do incidente processual e com a intermediação do inventariante digital.

Conclusão


O julgamento do REsp 2.124.424 inaugura um novo marco no direito sucessório brasileiro, ao estabelecer balizas para a sucessão digital. Entre a postura cautelosa da ministra Nancy Andrighi e a visão liberal do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o STJ optou por um caminho intermediário, capaz de conciliar o acesso dos herdeiros com a proteção da intimidade do falecido e daqueles com quem ele interagia.

Mais do que um precedente, a decisão sinaliza que a herança digital já é uma realidade que exige regulamentação urgente, preparo técnico dos operadores do direito e atenção especial no planejamento sucessório.